Memórias registadas a 1 de Fevereiro de 1992

Quando estou perto de pinheiros
espirro
As alfaces sem químicos
provocam-me alergia
Os frangos caseiros
dão-me vómitos
Ar puro
faz-me comichão
Gosto de me sujar na terra
quando previamente vesti
uma roupa velha
Gosto de me banhar no mar
quando vesti um biquini
para me mostrar
Gosto de estar ao sol
quando me revesti de um anti-sol
Nasci do lado da cidade
de pequena aprendi
a brincar de cócoras
por causa da sujidade
Por trás da casa
havia um pequeno
quintal
no quintal havia uma árvore
na árvore havia um baloiço
a árvore cortaram-na
incomodava ao vizinho
ver-nos perigosamente
a andar de balancé
Havia também uma roda
uma bomba de tirar água
um dum lado
outro do outro
um subia
outro descia
outro subia
um descia
O vizinho
pôs uma tábua a entravar
a bomba
porque era perigoso
subíamos demasiado alto
talvez ríssemos demasiado alto também
Em casa do vizinho
comia-se sempre ao meio dia
tudo estava limpo
tudo estava arrumado
Lá, não se diziam palavras feias
como gajo
E a velha dizia quando eu ia mexer nos seus
frasquinhos de medicamentos vazios
nos frasquinhos que ela amontoava numa cesta
no móvel debaixo da televisão:
Não bulas
O velhotinho punha-me no colo
e fazia-me duas tranças
à janela
Quando a velha ia lá a casa
eu escondia-me por trás da porta da cozinha
tinha cinco anos e ainda mamava no biberão
Menina feia, menina feia
E depois foi aquela tristeza
uma chávena de leite em cima da mesa
olhava para ela
a pensar como é que ia beber por ali
mas bebi

A velha morreu
o velhotinho também
não estranhei nem senti falta de ninguém

Depois ouvi dizer:
- Uma desgraça nunca vem só
Não há duas sem três
e morre o filho dos velhos

Depois ouvia a conversa da minha mãe
cá de baixo, perguntei
- O que é raro mãe, o que é raro?...
- É uma coisa que acontece poucas vezes

Foi mais uma palavra que aprendi

Depois havia uma cesta velha
de brinquedos velhos-novos
Brinquedos velhos: uma balança, um fogão, um porta-retratos, uma mesa pequenina de madeira sem uma perna, uma jarrinha azul claro de plástico
as couves no quintal
para brincarmos a fazer sopa
Um ancinho de criança
Uma vassoura pequenina
Fazíamos as casas
baptizávamos as bonecas
Quando a brincadeira estava melhor
aparecia mãe dela para a vir buscar
e nós dizíamos : - Logo agora!
Houve eu aprender a andar de bicicleta
Houve a minha primeira bicicleta
cor-de-laranja
Havia entardeceres quentes de Verão
vir da escola, lanchar e ir andar de bicicleta
No jardim
a criançada
brincava
Andar de bicicleta
jogar à patélinha
num entardecer de S. João
era bom

Comentários

J. disse…
que bonito, que bom!

abraço

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